quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

João e o pé...

Cortara muitos hectares de cana até conquistar a devida quantia em dinheiro para comprar a tal passagem para o sonho. Com as mãos negras e grossas da lida, um rosto de pele branca escondido sob a poeira e o suor víamos cintilar o desejo de voar, voar para o que chamava de sonho impossível. Atendia pela alcunha de João, como tantos outros. Sobrenome: Nordeste Brasil. No dia que comprara a passagem de um ônibus clandestino olhou através das poltronas rasgadas, das pessoas suadas, da carcaça desumana uma pequena abertura, uma passagem, um buraquinho onde de olhos fechados se jogou para cair na cidade do Rio de Janeiro. Não trouxera malas, não havia o que por dentro delas. Trouxera apenas no corpo uma camisa de botões branca e uma calça de linho antiga, presente de seus padrinhos, que por ventura haviam sido presenteados com vestimentas não mais usadas por seus patrões.

A viagem do veículo clandestino termina em uma rua qualquer no centro. Com alguns tostões, muita fome e nenhum destino João segue andando pelas calçadas. Observa pessoas sujas como se saíssem de um dia inteiro de trabalho no canavial. Não entende, mas havia tantas outras coisas que também não entedia, deixou por isso mesmo. Os dias passam o sonho não veio, o abrigo já não atende as necessidades mínimas, a rua volta a ser uma estrada de busca, norte de alguma mudança. As “amizades” surgem, a ingenuidade de João é um convite. A moradia cai do céu, ou levará ao céu. Um pequeno barraco para chamar de seu. Um pequeno quintal de terra e algumas sementes na mão. Eis que surge a pequena plantação de João. Não viera para cidade grande para cuidar de plantações, porém pagavam bem pela sua “hortaliça” e isso é o que estava valendo.

Dotado de uma ingenuidade pueril, João aos olhos dos outros era um grande cara-de-pau, um típico canastrão. Como poderia alguém tão ingênuo? Só poderia ser um ator representando muito bem um papel. A verdade é que João era de uma inocência impar, singular, não obtinha nenhum conhecimento sobre a arte de atuar, viera de um lugar onde a eletricidade, a educação e as verbas destinadas a fazer com que ela acontecesse fizeram a curva bem antes, acho que na mesma esquina em que Judas perdeu as botas. Matemática ele sabia, acho que já nascera sabendo quantas toneladas de cana cortada lhe dariam as modestas refeições semanais. Sua pequena horta prosperava. Pensava João: – Que bom negócio.

Certo dia cansou de comer a quentinha da tia Tereza, que sempre lhe pareceu um banquete em comparação ao que comeu durante boa parte de sua vida, decidiu cozinhar. Apanhou alguns molhos de “verdura” da sua horta, refogou metade e transformou em salada crua a outra. – O gosto é horrível! Constata João. – De certo isto não presta para comer. No entanto nem chegara a descobrir. Passaram-se dois dias e a manchete de um jornal popular dizia: “João e o pé de Maconha”. Em uma matéria de capa líamos: Nordestino leitor do conto infantil João e o pé de feijão vem para cidade do Rio de Janeiro enriquecer plantando maconha. E lá se foi nosso João tentar contar a sua história para as “autoridades”, história ingênua demais para esse Gigante; simples demais para a arte literária; real demais para ser ficção. João hoje sonha, sonha todos os dias e noites com a cana-de-açúcar, por que a “cana” que vem tendo é amarga e dura demais.

8 comentários:

  1. Fiquei sem palavras; me aconteceu um certo tipo de choro - um que não se chora pro lado de fora, ficou aqui, chorando dentro de mim, preso na garganta, embaçando os olhos, silenciando o espírito. Enegreci. Na boca o mesmo gosto da cana amarga; no corpo a sova, chutes, pontapés. Dor, muita dor. Tristeza dolorida como morte de filho pequeno; como morte de avó. Só me vinha uma frase à mente: "Eloí, Eloí, lamá sabactâni?" (Mc. 15:34).

    _Lindo texto, Preta!
    Bom dia!

    ResponderExcluir
  2. Você é fod.. mesmo hein!!!
    Escreve muito bonituuu..um comentário seu é uma arte...
    Amotemuito!

    ResponderExcluir
  3. O meu comment até pode ser uma arte, mas os seus textos são obras-primas!!!

    Te bom dia!

    ResponderExcluir
  4. ...E João continua a "plantar" e "viajar"... Gostei bastante da saga desse rapaz. E gostei mais ainda da desenvoltura da autora - muito mais livre e destemida. A internet não serve apenas para "afiar" (rs rs rs). Avante!

    ResponderExcluir
  5. Raramente encontramos um texto com tamanha sensibilidade e ao mesmo tempo tão "cortante", tão "marcante"...Vanessa, sua escrita é uma daquelas que ficam na mente do leitor por dias e dias...
    Muiiiiito Bom!

    ResponderExcluir
  6. Juro que não merecia ler isto a esta hora da noite. Quero e preciso dormir. Mas me deu uma certa "dor de cabeça", um nó na garganta...
    Belos escritos.

    ResponderExcluir
  7. Essas meninas falam demais! rsrsrsrsrs

    Pra mim basta dizer: Do caralho!!!!!!!

    ResponderExcluir
  8. Esse texto me deu vontade de fumar um...

    ResponderExcluir